Convivência com o Semiárido
Há mais de um século o semiárido nordestino tem sido alvo de iniciativas governamentais voltadas ao enfrentamento dos efeitos das secas periódicas que afetam a região. Por várias décadas, a abordagem teve como foco a construção de infraestrutura hídrica: açudes, sistemas de irrigação e adutoras. A partir da metade do século XX a implantação de projetos agrícolas de irrigação, alguns deles associados ao assentamento de agricultores, assumiu um papel de destaque. Não havia, no entanto, condições para que tal estratégia prosperasse como uma fórmula amplamente disseminada, já que o custo e os impactos ambientais seriam elevadíssimos.
Pela ótica social, a região sempre chamou a atenção de políticos, burocratas e acadêmicos. Vulneráveis às secas, os nordestinos alimentavam um forte fluxo de migrações em direção aos grandes centros urbanos da metade sul do Brasil, onde a indústria de transformação e a construção civil servia de polo de atração. Mas o equilíbrio entre essa atratividade e o êxodo dos chamados “retirantes” das secas era precário: muitos dos imigrantes não conseguiam ser absorvidos com empregos decentes e acabavam como vítimas de condições precárias nas cidades.
Com o esgotamento do ciclo industrial do Sudeste e do Sul como alternativa de emprego, as migrações campo-cidade das população do semiárido passaram a se dar na esfera da própria região Nordeste. Cresciam as cidades grandes, mas também as médias e pequenas. No entanto, no caso da urbanização em nível local, a vinculação de boa parte da população a atividades agrícolas permanece. Isso significa que essas pessoas se tornam duplamente vulneráveis às secas: como urbanos (ou periurbanos) estão expostos ao precário acesso à agua; como trabalhadores rurais, dependem das condições climáticas para produzir.
A recente criação de programas de transferência de renda aos extratos mais pobres da população (como é o caso do Bolsa Família) serviu de alento aos casos extremos de vulnerabilidade social. Seus beneficiários não dependem mais do clima para manterem um fluxo mínimo de renda, embora os valores que recebam do Estado sejam baixos. Um resultado imediato tem sido a redução da pressão migratória em momentos de secas.
Uma iniciativa de cunho social marcante nos anos recentes é a construção de cisternas junto às residências dos habitantes do campo ou de vilarejos. Trata-se de um processo que emprega tecnologia simples, já que essencialmente está baseada na coleta da água da chuva por meio de calhas instaladas nos telhados das casas e no armazenamento em depósitos construídos em regime de mutirão ou em caixas de material plástico adquiridas com fundos captados junto a empresas e governos.
O caso das cisternas tem um papel de destaque enquanto mudança no paradigma de enfrentamento dos efeitos das secas. Historicamente, sempre prevaleceu a ideia de que era preciso lutar contra esse fenômeno natural: a seca deveria ser objeto de “combate” e as obras deveriam ser “contra” as secas. O enfoque atual, coerente com o conceito de sustentabilidade, que foi lançado ao final dos anos 1980, é de que com a natureza não se deve lutar, apenas conviver.
Em termos práticos, no contexto do semiárido nordestino, a ideia de convivência com as secas implica, primeiramente, admitir que elas são eventos naturais. É verdade que a ação humana, com a conversão do bioma caatinga em áreas de pastagem, as queimadas e a redução da cobertura vegetal tendem a modificar a dinâmica natural da região, com efeitos sobre o regime pluvial e, por consequência, também sobre a disponibilidade hídrica. Mas é verdade também que a região é vulnerável a eventos climáticos originados em outras partes do Planeta, como o fenômeno El Niño, no oceano Pacífico.
Aprender a conviver com o semiárido, no lugar de lutar com contra as secas, significa reinterpretar o modo como a população lida com o seu ambiente natural e revisar os mecanismos e instrumentos de intervenção pública. Ao invés de se buscar transformar a região naquilo que ela não é, a convivência implica buscar alternativas tecnológicas que permitam valorizar potencialidades e vocações compatíveis com as suas reais condições naturais e com seu contexto social.
Aprender a conviver, de modo sustentável, com as condições naturais adversas requer um esforço no sentido de resgatar conhecimentos e práticas que estavam obscurecidas pela prioridade em se adotar fórmulas intensivas em capital e em tecnologias que nem sempre são adaptáveis ao contexto local. Requer também investir em novos equacionamentos técnicos dos problemas da região. O exemplo das cisternas, simples e baratas, deve servir de referência como modelo que valoriza aspectos sociais e tem efeitos duráveis, já que tende a evitar as migrações em momentos de seca aguda. O desafio é vencer os gargalos encontrar fórmulas que permitam disseminar práticas que se mostraram efetivas.
Marcel Bursztyn
Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília
Texto extraído do libro do 2º Seminário e Curso Internacional de Convivência com o Semiárido.